Não costumo concordar com João Pereira Coutinho, sobretudo por razões ideológicas, mas este texto que aqui transcrevo está maravilhoso e diz tudo o que eu penso sobre o Acordo Ortográfico. O texto foi publicado no jornal brasileiro Folha de S. Paulo.
"Começa a ser penoso para mim ler a imprensa portuguesa. Não falo da qualidade dos textos. Falo da ortografia deles. Que português é esse?
Quem tomou de assalto a língua portuguesa (de Portugal) e a transformou numa versão abastardada da língua portuguesa (do Brasil)?
A sensação que tenho é que estive em coma profundo durante meses, ou anos. E, quando acordei, habitava já um planeta novo, onde as regras ortográficas que aprendi na escola foram destroçadas por vândalos extra-terrestres que decidiram unilateralmente como devem escrever os portugueses.
Eis o Acordo Ortográfico, plenamente em vigor. Não aderi a ele: nesta Folha, entendo que a ortografia deve obedecer aos critérios do Brasil.
Sou um convidado da casa e nenhum convidado começa a dar ordens aos seus anfitriões sobre o lugar das pratas e a moldura dos quadros.
Questão de educação.
Em Portugal é outra história. E não deixa de ser hilariante a quantidade de articulistas que, no final dos seus textos, fazem uma declaração de princípios: “Por decisão do autor, o texto está escrito de acordo com a antiga ortografia”.
A esquizofrenia é total, e os jornais são hoje mantas de retalhos. Há notícias, entrevistas ou reportagens escritas de acordo com as novas regras. As crônicas e os textos de opinião, na sua maioria, seguem as regras antigas. E depois existem zonas cinzentas, onde já ninguém sabe como escrever e mistura tudo: a nova ortografia com a velha e até, em certos casos, uma ortografia imaginária.
A intenção dos pais do Acordo Ortográfico era unificar a língua.
Resultado: é o desacordo total com todo mundo a disparar para todos os lados. Como foi isso possível?
Foi possível por uma mistura de arrogância e analfabetismo. O Acordo Ortográfico começa como um típico produto da mentalidade racionalista, que sempre acreditou no poder de um decreto para alterar uma experiência histórica particular.
Acontece que a língua não se muda por decreto; ela é a decorrência de uma evolução cultural que confere aos seus falantes uma identidade própria e, mais importante, reconhecível para terceiros.
Respeito a grafia brasileira e a forma como o Brasil apagou as consoantes mudas de certas palavras (“ação”, “ótimo” etc.). E respeito porque gosto de as ler assim: quando encontro essas palavras, sinto o prazer cosmopolita de saber que a língua portuguesa navegou pelo Atlântico até chegar ao outro lado do mundo, onde vestiu bermuda e se apaixonou pela garota de Ipanema.
Não respeito quem me obriga a apagar essas consoantes porque acredita que a ortografia deve ser uma mera transcrição fonética. Isso não é apenas teoricamente discutível; é, sobretudo, uma aberração prática.
Tal como escrevi várias vezes, citando o poeta português Vasco Graça Moura, que tem estudado atentamente o problema, as consoantes mudas, para os portugueses, são uma pegada etimológica importante. Mas elas transportam também informação fonética, abrindo as vogais que as antecedem. O “c” de “acção” e o “p” de “óptimo” sinalizam uma correta pronúncia.
A unidade da língua não se faz por imposição de acordos ortográficos; faz-se, como muito bem perceberam os hispânicos e os anglo-saxônicos, pela partilha da sua diversidade. E a melhor forma de partilhar uma língua passa pela sua literatura.
Não conheço nenhum brasileiro alfabetizado que sinta “desconforto” ao ler Fernando Pessoa na ortografia portuguesa. E também não conheço nenhum português alfabetizado que sinta “desconforto” ao ler Nelson Rodrigues na ortografia brasileira.
Infelizmente, conheço vários brasileiros e vários portugueses alfabetizados que sentem “desconforto” por não poderem comprar, em São Paulo ou em Lisboa, as edições correntes da literatura dos dois países a preços civilizados.
Aliás, se dúvidas houvesse sobre a falta de inteligência estratégica que persiste dos dois lados do Atlântico, onde não existe um mercado livreiro comum, bastaria citar o encerramento anunciado da livraria Camões, no Rio, que durante anos vendeu livros portugueses a leitores brasileiros.
De que servem acordos ortográficos delirantes e autoritários quando a língua naufraga sempre no meio do oceano?"
6 comentários:
Isabel,
Eu havia lido essa matéria por ocasião da sua publicação na Folha de São Paulo.
Nós pensamos exatamente assim. Para que esse acordo?
Beijo.
Minha querida Isabel,não sei o que é pior, se o "desacordo" ortográfico se a nova gramática do português (embora sobre esta andem todos muito calados)
Mas num país que é considerado lixo, a língua quer-lhe fazer companhia. Só pode!
Uma lástima, mesmo, Isabel. Aqui também não gostamos nada das mudanças, todas desnecessárias. Tanta coisa mais importante para ser lei e vem esse acordo. Tivemos 3 anos para protestar, e nada foi feito. Mas ainda podemos, não?
Por aqui, o nãos eguir as normas de agora implica em perder pontos em provas, testes, concursos, etc.
Mas o jornalismo poderia mesmo se rebelar, quem sabe conseguem que tudo volte a ser como antes?
Isabel!
Que bagunça tudo isso está fazendo por aí e aqui!
Concordo plenamente com o autor do texto, pois o mais lindo de tudo é ver as diversas formas que esta língua mater se transformou. E cada vez que viajamos ao velho continente, dá um prazer enorme ouvi-la ou lê-la na sua forma original.
Tanta coisa importante para se cuidar nos dois países e ficam inventando estas lenga-lengas!
beijinhos cariocas
Meninas brasileiras, que bom que entendem a nossa opinião. Absolutamente nada contra o modo brasileiro de falar e escrever português, que eu adoro. Acho precisamente que as diferenças são naturais e devem ser mantidas.
É apenas uma questão de lógica. Esse acordo não tem lógica :)
Bjs
Noémia, também já ouvi dizer que a nova gramática é de fugir, pelo que me conta uma amiga professora de português. Enfim, eles lá fechados nos seus gabinetes inventam disparates sem sentido e nós somos obrigados a pôr em prática. Haja paciência!
Bjs
Boa, excelente texto! Muito claro e verdadeiro.
Não me digas que os brasileiros descobriram antes de nós que precisamos do C nas palavras acção, factura, lectivo, e muitas outras... para que a vogal seguinte seja aberta?? Que tristeza não ver quase nenhuns portugueses em protesto contra este acordo sem sentido!
Continuo em rebelião! :)
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