domingo, 12 de outubro de 2008

Cisnes Selvagens

Este livro narra a história de três gerações de uma família chinesa ao longo do século XX. A autora conta a história da sua família centrando a narrativa na vida de três mulheres: a sua avó, a sua mãe e ela própria. As experiências de cada um destes três cisnes selvagens vão formando também um retrato da China. Jung Chang dá-nos assim a sua visão do conturbado século XX chinês, desde os anos de guerra civil que se seguiram ao fim do império, passando pelas várias fases das conturbadas políticas de Mao, até à tomada de poder de Deng Xiaoping, após a morte de Mao. A vida da avó enquanto jovem mostra-nos a teia complexa de inúmeras tradições seculares da qual era difícil escapar. A vida da mãe mostra-nos a apaixonada aderência dos jovens ao movimento comunista que prometia liberdade e igualdade e a posterior caça às bruxas da qual foram vítimas. Através da vida da filha ficamos a conhecer o culto da figura de Mao e a posterior queda por terra do mito.
Deixo-vos aqui um pouquinho da vida de cada uma delas.

Yu-fang, a avó:


"Com quinze anos de idade, a minha avó tornou-se concubina de um caudilho militar, o general chefe da polícia de um vago governo nacional chinês. Corria o ano de 1924 e a China estava mergulhada no caos. (...) A ligação tinha sido combinada pelo pai, um obscuro funcionário da polícia na cidade provincial de Yixian. (...) O meu bisavô não era suficientemente rico para comprar uma posição lucrativa numa grande cidade, mas tinha planos. E tinha um bem valioso: uma filha. A minha avó era uma beldade. Tinha um rosto de forma oval, com faces rosadas e pele sedosa. O seu grande valor residia, porém, nos pés enfaixados, chamados em chinês "lírios dourados com oito centímetros". (...) Tinha a minha avó dois anos quando lhe enfaixaram os pés. (...)O processo demorava anos. Mesmo depois de os ossos terem sido partidos, os pés tinham de continuar enfaixados, dia e noite, em tiras de pano, pois no momento em que fossem libertados, tentariam recuperar. Durante anos, a minha avó viveu cheia de dores terríveis e constantes. Quando suplicava à mãe que lhe tirasse as faixas, ela chorava e dizia-lhe que isso arruinaria toda a sua vida futura, e que fazia aquilo para felicidade dela. Naqueles tempos, quando uma mulher casava, a primeira coisa que a família do noivo fazia era examinar-lhe os pés. Uns pés grandes, ou seja, uns pés normais, traziam vergonha para a casa do marido. (...)"

"Esperava-se que um homem como o general Xue tivesse concubinas. As esposas não serviam para dar prazer; esse era o papel das concubinas. Embora estas pudessem por vezes adquirir um poder muito considerável, o seu estatuto era muito diferente do da esposa. A concubina era uma espécie de amante institucionalizada, que se tomava e punha de lado a bel-prazer.
A primeira vez que a minha avó soube da sua iminente mudança de situação foi quando a mãe lhe comunicou a notícia, poucos dias antes do acontecimento. Yu-fang inclinou a cabeça e chorou. Detestava a ideia de ser concubina, mas o pai tinha tomado uma decisão, e era impossível opor-se aos seus desejos. Discutir uma decisão paterna era considerado "impróprio de um filho", e fazer qualquer coisa imprópria de um filho equivalia praticamente a traição."

De-hong, a mãe:


"Havia já algum tempo que a minha mãe andava a voltar-se cada vez mais contra o Kuomintag. A única alternativa que conhecia era os comunistas, e sentira-se especialmente atraída pelas suas promessas de pôr fim às injustiças a que as mulheres estavam sujeitas. Até à altura, com quinze anos de idade, não sentira ainda a necessidade de empenhar-se definitivamente. A notícia da morte do primo Hu ajudou-a a decidir-se. Ia juntar-se aos comunistas."


"Depois de, com toda a franqueza, terem contado um ao outro as suas vidas passadas, o meu pai disse que ía escrever ao Comité do Partido pedindo autorização para «falar de amor» com a minha mãe, com vista a um casamento. Este procedimento era obrigatório. A minha mãe pensou que seria um pouco como pedir autorização ao chefe da família e na realidade era exactamente disso que se tratava: o Partido Comunista era o novo patriarca. "

"Dois meses depois de terem casado - e menos de um ano após a Libertação - os meus pais eram expulsos da terra natal da minha mãe pelos mexericos e a inveja. A alegria que a minha mãe sentira com a libertação transformara-se numa melancolia ansiosa. Sob o Kuomintag, fora-lhe possível descarregar na acção as suas tensões - e fora fácil sentir que estava a fazer o que devia, o que lhe dera coragem. Agora, pelo contrário, sentia-se permanentemente errada. Quando tentava conversar com o meu pai a respeito destas coisas, ele respondia-lhe que tornar-se comunista era um processo difícil e doloroso. Era assim que tinha de ser."

Jung
, a filha:

"O «Presidente Mao», como lhe chamávamos sempre, afectou pela primeira vez a minha vida, de forma directa, em 1964, quando eu tinha doze anos. Tendo-se mantido afastado durante algum tempo depois da grande fome, estava a iniciar o seu regresso à ribalta e, em Março do ano anterior, lançara um apelo aos jovens para que «aprendêssemos com Lei-Feng».
Lei Feng era um soldado que, segundo nos disseram, tinha morrido com 21 anos, em 1962. Fizera uma grande quantidade de boas acções, não olhando a esforços para ajudar os mais velhos, os doentes e os necessitados. Doara as suas poupanças para os fundos de auxílio aos sinistrados e dera as suas rações de alimentos a camaradas que estavam no hospital. Não tardou que Lei Feng começasse a dominar a minha vida. Todas as tardes, saíamos da escola para «fazer boas acções, como Lei Feng». (...) Gradualmente ao longo daquele ano de 1964, a ênfase foi-se transferindo das boas acções para o culto de Mao. A essência de Lei Feng, diziam-nos os professores, era «o seu amor e a sua devoção sem limites pelo Presidente Mao». Antes de fazer fosse o que fosse, Lei Feng pensava sempre em algumas palavras do Grande Líder. (...) E nós jurávamos seguir as pisadas de Lei Feng, e estar dispostos a «escalar montanhas de facas e mergulhar em mares de chamas», a «deixar que nos transformem o corpo em pó e os ossos em lascas», a «submetermo-nos incondicionalmente ao controlo do Grande Líder». O culto de Mao e o culto de Lei Feng eram as duas faces de uma mesma moeda: um era o culto da personalidade, o outro, seu corolário inevitável, o culto da impersonalidade."

3 comentários:

ameixa seca disse...

Há coisas que eu não acho normais... só mesmo os chineses para acharem que uns pés normais traziam vergonha ao marido. Eu já vi imagens dos pés enfaixados e não é nada bonito... muito pelo contrário.
Não conhecia o livro mas ainda bem que é possível contar-se estas histórias e saber-se um pouco mais do mundo e das pessoas que nele vivem :)

Isabel disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Isabel disse...

Essa tradição era mesmo horrível, ainda bem que já não é praticada. Eu não descrevi todo o processo porque é mesmo muito cruel.